Melbourne e Marte num instante. Expressos para um Admirável Mundo Novo!
O que se escreveu, viu ou ouviu na última semana #4
A falar de cinema é que a gente se entende …
Um pé em Berlim, outro em qualquer canto do Planeta. Sem o glamour da Competição e dos seus nomes sonantes, esgueirei-me (e continuo a fazê-lo) sobre novas vozes nas secções paralelas, da Ucrânia sonhadora por Eva Neymann [“When Lightning Flashes Over Sea”], do passado colonialista com mariposas no meio por Tatiana Fuentes Sadowski [“La memoria de las mariposas”], um “Acontecimento” filipino e ainda um coro de jovens na sua descoberta sexual [“Sunshine”].
São alguns pontos que a Berlinale (ainda a decorrer) ofereceu-me nestes últimos dias, inclusive Melbourne como cidade de reencontros num ensaio de baixo-orçamento com cheiro à espontaneidade nouvelle vague e da autenticidade trazida pelo digital. Falo de “Fwends”, um “friends” em “broken english” que não é apenas um erro de tradução, é uma abstração de uma amizade revelada não tão íntima assim. Amigas de longa data, com distância geográfica no meio e um fim-de-semana como fiscalização desses mesmos traços afetivos que por uma e mil razões não se consolidam. A australiana Sophie Somerville conversou sobre este projeto, a sua primeira longa-metragem após a atenção merecida de “Peeps” (curta sobre duas meninas a divagar num centro comercial), um pouco pessoal, um pouco concreto e um tanto abrangente aquilo que definimos hoje em dia como amizade no século XXI. “Fwends” estreou na secção Forum. A conversa poderá ser lida aqui.
Continuando no chat-chat, e aproveitando a presença da obra no catálogo da TVCine+ e com a Monstra aí à porta [o estúdio Laika será o destaque, fica o aparte], viajamos para Marte do século XXIII, em enredos detetivescos de fazer corar K. Dick, Asimov e a contemporaneidade referencial que testemunhamos. “Mars Express”, animação do francês Jérémie Périn, soa como uma vontade de resgatar este universo do círculo infanto-juvenil ou do comentário imediatamente político-social: fazer cinema de género sem impossibilidades estéticas e respeitando ao máximo a criatividade e visão do autor. O diálogo tocou nas amplitudes da animação, no AI, e no transumanismo, hoje agravado com os delírios de Elon Musk e dos seus “comparsas” tecno-bros. [Ler aqui]
Ainda sobre a semana passada:
“Sing Sing” de Greg Kwedar, “filme de Óscar sem o dito prestígio do selo de Melhor Filme”, um exercício performativo na homónima prisão de alta segurança, com não-actores (e ex-reclusos) e um protagonista - Colman Domingo -, a fazer jogging com este jogo de experiências e realidades. Acima de tudo, da sua crueza e desapego estético, é uma obra que apela a empatias, principalmente daquelas que o dito subgénero de prisão construiu em sua contradição. Aqui um programa de reabilitação por via de teatro, exerce nestes condenados para a vida, não apenas uma oportunidade para agarrar, e igualmente as suas catarses, as suas epifanias e as dores ali encenadas e distorcidas para o bem do seu anfitrião. Continua nas salas de cinema, enquanto o texto, poderão lê-lo aqui … tem galões e imperiais pelo meio, fica o spoiler.
Ainda há lugar para super-heróis no cinema nesta atualidade, principalmente estando o mundo e o país bastião, EUA, virado do avesso. A Marvel Studios não larga o osso, teima no seu franchise, e avança no quarto Capitão América, com título bem sugestivo e zeitgeist - “Brave New World”. A verdade é que este novo episódio da novela saboreia algumas coincidências para aquilo que, à distância de um noticiário, verificamos. Uma guerra iminente com arranque de disputa comercial e extração de minerais raros e até um presidente com má índole e tons avermelhados. Não é o pior da franquia como a “crítica” americana pinta com tomates rotos para o seu aparelho mediático, mas a fadiga, mais nossa, e a desorientação da narrativa cruzada promovida pelo estúdio se nota a léguas. [Ler aqui].
Conversas alternativas … lá fora, cá dentro
Já disponível nas livrarias, “O que é o Cinema?” de André Bazin, traduzido por Ana Moura, editado pela E-Primatur (colecção Imagética)
Nova Revista Argumento, nº 181, destaque para a entrevista com os produtores Pedro Borges e Filipa Reis.
“Megalopolis”, o ambicioso filme de Francis Ford Coppola, já pode ser visto na Filmin
Festejar o centenário de Carlos Paredes, com os “Verdes Anos” de Paulo Rocha no horizonte, no novo episódio do podcast “De Olhos Bem Fechados”, de Rui Alves de Sousa.
Conversas alternativas … lá dentro, cá fora
As folhas da Cinemateca regressam em formato livro!! Dia 19 de Fevereiro, quarta-feira, a Cinemateca em colaboração com a Livraria Linha de Sombra, lançarão um novo volume da colecção “folhas da Cinemateca” dedicado ao cineasta iraniano Abbas Kiarostamis. Pelas 19h00, será exibido “Ta'm e Guilass” / “O Sabor da Cereja” (1997) como comemoração do evento.
No Batalha Centro de Cinema, há mistérios milenares com “Os Abismos à Meia-Noite” de António de Macedo. Quarta, 19 de Fevereiro, pelas 19h15. Legendas em inglês
A partir de domingo, 23 de Fevereiro, será exibido um mini-ciclo do cinema de Walter Salles. “Ainda Estou Aqui” como jóia da coroa, e as oportunidades de (re)ver “Central Brasil” e “Terra Estrangeira”. No Cinema Nimas.
“All We Imagine as Light”, de Payal Kapadia, dia 20, quinta-feita, no Cineclube de Joane, Casa de Artes de Vila Nova de Famalicão. Pelas 21h45.
Brevemente no sítio do costume
Mantendo-me em Berlim, e com Slamdance cada vez mais próximo.
Noites Claras, de Paulo Filipe Monteiro
The Monkey, de Osgood Perkins
September 5, de Tim Fehlbaum
Longe da Estrada, de Hugo Vieira da Silva e Paulo MilHomens
Extrato Bibliófilo
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Poema em Linha Recta (Fernando Pessoa sob o heterónimo Álvaro Campos)
Canta que os teus males espanta …
Mantendo no registo poético: Mia Tomé no seu novo álbum “Há um Herbário no Deserto”
Mensagem de rodapé
Uma vénia ao cineasta brasileiro Carlos "Cacá" Diegues (1940 - 2025), recordar o seu mítico “Bye Bye Brasil” (1980)
Revelados os nomeados para a 3ª edição dos Prémios Curtas, ler aqui. Gala de entrega de prémios no dia 5 de abril, no Forum Lisboa.
Monstra a chegar!! [20 a 30 de Março]
A marcar na agenda: as primeiras novidades do Encontros de Cinema do Fundão [28 de Maio a 1 de Junho], com as presenças confirmadas dos realizadores Enzo G. Castellari, Pablo García Canga e Pedro Ruivo.
Nota para dia 25 de fevereiro, a minha presença no FNAC Chiado para uma conversa sobre os Óscares e os seus nomeados, com moderação do crítico e jornalista Rui Pedro Tendinha. Mais novidades em breve …